terça-feira, 12 de agosto de 2008

As aspas da abolição

Mil oitocentos e oitenta e oito. Treze de maio. Após uma confluência entre pressões externas e internas, com a promulgação da Lei Áurea, o Brasil fora o último país ocidental a “abolir” oficialmente a prática da escravatura. Através de tal ato a nação pretendia adequar-se ao contexto do trabalho livre, já contemplado em grande parte das nações, e essencial à consolidação da modalidade do capitalismo industrial nascente.

Ao contrário do ocorrido em alguns países, no Brasil, o processo de transição entre a escravidão e o trabalho livre foi decorrente de um arranjo político, não havendo uma guerra civil. Assim, a luta entre abolicionistas e os grandes proprietários escravocratas foi uma batalha parlamentar. Os grandes proprietários rurais defendiam uma volátil ideologia a fim de justificar o cativeiro – alguns afirmavam que traziam benefícios à população negra ao inseri-los em uma “sociedade civilizada”, outros, ou apelavam para a catequese, ou para a simples necessidade do escravismo para manutenção do sistema vigente. Já nos centros urbanos, os abolicionistas defendiam, num discurso ilustrado, o fim da escravidão argumentando ser uma instituição corruptora da moral e dos costumes, que alienava os direitos naturais do homem, além de ser menos produtiva que o trabalho livre.

Apesar desse antagonismo interno entre cidade e campo, o primeiro passo efetivo rumo à abolição – Lei Eusébio de Queirós – foi dado mais por pressão externa, exercida pela Inglaterra, que por mobilização do movimento intelectual urbano, pouco consolidado na época. Ainda que mais tarde esse movimento, já mais bem organizado, venha provocar uma pequena redimensionalização do negro na sociedade, invertendo gradualmente os papéis há muito trocados - o negro deixa de ser coisificado, passando a ser visto como humano e o senhor escravocrata como algoz -, fica claro pós-abolição que seu enfoque era consonante com a questão política e econômica defendida pela Inglaterra, ansiosa em fomentar um mercado consumidor interno em decorrência do assalariamento dos libertos.

O movimento que visava à abolição da escravatura, o fazia, porém, desacompanhado de projetos de inserção do contingente de mão-de-obra negra ao sistema do trabalho livre e de integração do negro com a sociedade – propunha a abolição da escravatura, contudo sem demolir os fundamentos da sociedade escravocrata: a monocultura e o latifúndio. Dessa forma, enquanto fossem mantidos tais fundamentos, as mudanças acarretadas pela abolição seriam apenas superficiais e artificiosas.

A partir do momento em que houve um esforço da classe dominante em negar a afirmação da identidade cultural africana por parte dos cativos, reprimindo valores, danças e cultos, e reavivando a tendência à europeização da sociedade brasileira, esse quadro histórico de exclusão tornou-se ainda mais expressivo. O incentivo à imigração branca e a constante desqualificação do trabalho livre exercido pelo negro resultaram em preconceitos como o do “trabalho de negro”, que relaciona o negro às várias formas de trabalho braçal e até hoje se observa cristalizado em algumas áreas do país.

Mesmo com todo o legado da escravidão, não convém afirmar que as dificuldades enfrentadas pelo negro no mercado de trabalho hodierno sejam unicamente oriundas dos vínculos absorvidos durante o período de escravidão. As próprias relações instituídas são constantemente reestruturadas e remodeladas em novas formas preconceituosas. Admite-se, por exemplo, uma revalorização da cultura lúdica afro-brasileira, a qual acaba por induzir à errônea concepção de que o negro é mais apto à dança e à música que a outras áreas do conhecimento. Tal fenômeno torna-se preocupante por não contribuir para a real inclusão no mercado de trabalho e ainda afetar a auto-estima dos jovens negros, que bombardeados por essas idéias, assimilam estarem menos inclinados à cultura acadêmica.

Impõem-se à população negra inúmeras barreiras a serem transpostas. Há pouco tempo, a “boa aparência” era um dos critérios para a ocupação de cargos – sabe-se que por tal se subtendia feições não-negras, configurando um artifício do empresariado para tolher a participação desse segmento étnico no mercado de trabalho. Ademais, a própria marginalização social e os baixos índices de formação do trabalhador negro ratificam a posição que lhe é designada.

A competição pelo espaço no mercado de trabalho permanece desigual inclusive quando brancos e negros atingem patamares educacionais semelhantes. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE -, brancos chegam a receber em média salários duas vezes maiores que os recebidos por negros e, dentre os desempregados, o número de negros é maior.

Mediante toda a conjuntura apresentada, percebe-se que a função social do trabalho, preceito basilar constitucional, juntamente com o direito fundamental à igualdade, que no estado democrático de direito, além de formal, é material, deve ser assegurado através de políticas que possibilitem uma gradual mudança de mentalidade social. Somente assim, cento e vinte anos depois, poderemos finalmente dizer que a escravidão foi abolida. Sem aspas.

P.S. - essa redação foi terceiro lugar de um negócio aí.

1 comentários:

Solitude disse...

Continuo achando que deveria ganhar...